O Dia Perfeito




- Meu Deus, o que é isso?

Edna havia terminado a limpeza, estava sozinha em casa, sua rotina diária havia chegado ao final, ela tinha cumprido com a presteza de sempre todas as suas atividades rotineiras, o quarto dos filhos estava impecável, ambos estavam na escola desde as duas da tarde e só chegariam depois das sete, ela conferiu o relógio e ainda eram cinco e meia. Foi aí que o desespero começou, a limpeza da casa sempre tomava mais tempo, ela tinha uma hora de descanso que sempre ocupava lendo uma revista de fofoca ou ajeitando pequenos detalhes pelo apartamento ou na mobília que ela mesma havia escolhido.

Não fazia sentido... A limpeza de seu quarto estava tão em dia quanto a do quarto das crianças, sua cama estava perfeitamente estendida os quadros na parede oposta à da janela, perfeitamente alinhados, a cortina tinha cada dobra em perfeita harmonia, os chinelos do marido estavam mais limpos que no dia em que foram comprados, as gavetas de ambos os criados-mudos, o seu e o do marido, estavam tão organizadas que pareciam ter sido arrumadas por um cirurgião. Os tapetes pareciam ter sido penteados pelo à pelo, as toalhas do banheiros estavam limpas e cheirosas e não havia uma única mancha na pia do banheiro de seu quarto, nem havia sequer um fio de cabelo no ralo do banheiro, o vidro fosco do box estava clinicamente limpo e mesmo a luminária do banheiro parecia ter sido comprada naquela tarde, não havia sinal de teia de aranha ou de qualquer inseto inconveniente. 

Edna saiu de seu quarto na esperança de encontrar algo na sala para ser organizado, para que ela pudesse encontrar alguma paz de espírito, na sala, porém, só encontrou mais do mesmo desespero que vinha seguindo-a desde que notou que a faxina havia terminado. A mesa de centro milimetricamente colocada entre os dois sofás brancos com pequenas tulipas estampadas... Por um momento ela se sentou na beiradinha do sofá onde costumava se sentar, porém, não antes de colocar uma toalha entre seu corpo e o tecido branco, aquele sofá foi motivo de uma briga com seu filho mais velho, que queria se deitar sem camisa para ler alguma de suas bobagens sobre bruxos e escolas de bruxaria ou anéis e elfos. O garoto insistia na ideia maluca de se deitar sem camisa, ela se lembrava da cena com uma vivacidade perturbadora...

- Mãe, eu só quero me deitar aqui e ler...

- Pelo amor de Deus, meu filho, vai ensebar todo o meu sofá, se você quer ler deitado vai pra sua cama. Ou coloca uma toalha aí. 

- Puta merda heim mãe...

- Menino, você olha essa língua.

Ela sentiu falta dos filhos em casa, se eles estivem por ali ela teria com quem conversar, mas não havia ninguém além dela no apartamento. A saída foi ir pra cozinha, sempre havia alguma coisa pra ser organizada na cozinha. E lá ela foi, passo a passo, com a esperança renovada, a cozinha era um espaço que constantemente carecia de sua atenção, não foi, porém, surpresa alguma que não tenha encontrado nada fora do lugar, suas esperanças deslizaram pelo mármore da pia da mesma forma que o sabão deslizava quando ela lavava a louça do jantar. O desespero foi crescendo de novo, ela abriu a geladeira. Forminhas de gelo cheias, garrafas de água organizadas, frios devidamente estocados e mesmo as verduras pareciam zombar de sua busca inútil para ocupar o tempo. 

O que mais a assustava era que isso nunca havia acontecido antes, sempre havia algo para ser feito na casa, então ela teve uma ideia, resolveu reorganizar o armário de panelas, tirou todas e colocou cada uma em cima da mesa da cozinha, por garantia ela esvaziou o armário de vasilhas e as gavetas de talheres, todos em cima da mesa, parecia que ela finalmente poderia voltar a plasmar sua existência através da organização do caos diário que era sua casa. Afinal, sua vida fazia sentido assim. Não era? Ela era a organizadora, ela apaziguava as brigas entre o marido e o filho homossexual, ela garantia que a sogra não se esquecesse dos remédios de todos os dias, se não fosse por ela ninguém no grupo da igreja conseguiria executar corretamente as ordens do padre novo. A limpeza da casa também era sua responsabilidade, se não fosse por sua insistência diária os filhos não fariam as tarefas da escola, se não fosse por ela o marido não sairia todos os dias para trabalhar no horário... Ela era útil, era necessária. Não era?

- Meu Deus... Eu... Eu...

Ela tentou rezar, mas pareceu que nem isso era possível, as coisas esparramadas pela mesa já não faziam mais sentido, a casa arrumada à perfeição perdeu totalmente a cor. Seus planos para o futuro pareciam não ser nada. Sua vida inteira pareceu poder ser resumida e meia página. Ali estava ela, olhando para a mesa desorganizada sem encontrar sentido em colocar tudo de volta no devido lugar, ali estava ela, com algo preso dentro de si, algo que não era choro, não era vontade de gritar, era mais que isso, era vontade de rasgar o peito e fazer colocar o universo dentro, o universo de repente pareceu pequeno para preencher o vazio que sentia naquele momento. Talvez toda a existência... mas nem ela, nem mesmo se os universos fossem infinitos ela poderia preencher o vazio, e que vazio era esse? Ela não sabia dizer, só sabia que tudo ao seu redor parecia ínfimo, parecia questionável, parecia diluído. 

Seu último recurso era a oração, e ela o tentou, e o desespero foi ainda maior quando notou que Deus era um ser pequeno e frágil que jamais seria o bastante para preencher o vazio que ela sentia, Deus é só todo poderoso, o que ela sentia era maior que isso. Num acesso ela arremessou uma panelinha de inox na parede, o azulejo ficou riscado, mas não chegou a trincar, nem a força bruta iria tira-la deste estado. 

- Eu posso fazer qualquer coisa... Eu posso... tudo.

Este pensamento verbalizado quase em um murmúrio foi aterrador, ela era livre, ela sempre soube que era livre, mas por alguma razão, naquele instante ela percebeu que era livre para sair de casa, para nunca mais ver os filhos, para abandonar o marido e seu ronco infernal, para chamar a sogra de “velha ordinária” e nunca mais pisar n’aquele piso maldito, sobre o qual ela passou longas horas de sua vida ajoelhada e esfregando, horas perdidas, inúteis. 

Edna correu até o quarto onde o marido pensava esconder dela um maço de cigarros, ela acendeu um e o primeiro sopro não trouxe alívio, o segundo tão pouco, no terceiro ela voltou a olhar para o relógio e notou que seu tempo de solidão estava acabando, ela pensou em sair de casa, sem malas, sem dinheiro, só para ver o que acontecia, mas permaneceu, o cigarro queimando, esquecido, sujando o tapete até então imaculado, ela ficou ali imóvel, silenciosa, até ser despertada pelo marido chamando seu nome, ele havia entrado em casa e ela sequer havia notado.

- Fumando escondida. Né, Edinha?

- Oi?

O marido era relativamente perspicaz, ele notou que algo estava errado, provavelmente pensou que alguém havia morrido, neste intervalo entre o silêncio da esposa e a hesitação do marido, Edna percebeu mais barulho na casa, as crianças haviam chegado, seu marido rapidamente saiu do quarto, deixando a esposa sozinha. Novamente em solidão o mundo foi se reorganizando, a vida voltou a circular lentamente e suas veias, mas parecia que algo sempre estaria errado. 

Ela jogou o cigarro na privada, passou o pé pelas cinzas no tapete e foi para a cozinha, lá ela encontrou o marido e os filhos guardando sua bagunça intencional, ela não sentiu vontade de ajudar, mas também não sentia tão intensamente o vazio que sentia antes, e percebeu o motivo: o dia estava perfeito demais...

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