A Travessia de Caleb, Geraldine Brooks







A Travessia de Caleb é uma releitura romanciada do pouco que se sabe da vida de Caleb Cheeshahteaumauk, o primeiro índio a se formar na Universidade de Harvard. Tecida pelas mãos habilidosas de Geraldine Brooks, o romance tem uma graciosidade que encanta na forma como é escrito, apesar da história, aos poucos, se revelar trágica. A travessia a que o título se refere é entre essas duas culturas diametralmente opostas: da tribo indígena wôpanâak na ilha de Noepe ao continente colonizado (e deteriorado) pelos ingleses. É natural imaginar que, nessa travessia, esbarremos em muitos questionamentos acerca da organização social e, principalmente, dos preceitos religiosos sob os quais ela se estrutura.


Quem nos conta essa história é Bethia, filha de um influente pastor no povoado de Great Harbor, situado na mesma ilha em que habitam diversas tribos indígenas. Foi o avô de Bethia quem negociou a ocupação dessas terras pelos ingleses e é quem gerencia o vilarejo, detendo então um certo poder regional. Deixando de lado essas questões mais políticas das relações entre os ingleses e os índios na ilha, o livro poderia muito bem se chamar Memórias de Bethia Mayfield, pois é exatamente isso que ele é. Mas sua vida se cruza de forma tão íntima com a de Caleb que sua história conta também a história dele.

No primeiro momento do livro, Bethia tem cerca de 14 anos e somos habituados a sua vida na ilha. Desde então somos expostos a diversas questões que, particularmente, me angustiaram, como o evidente machismo da época. Mais do que a mulher ser basicamente a empregada da casa que não pode questionar seu marido, pai, irmãos ou qualquer outro homem, mas também por elas não poderem sequer estudar. Bethia, ávida por conhecer o mundo, não tem esse direito. Mesmo com seu pai educando o irmão no quarto ao lado para que ingresse em uma universidade no continente, ela lhe tem o conhecimento negado. O que lhe resta é escutar as aulas escondidas ou, clandestinamente, pegar os livros do pai. E é assim que ela se descobre muito mais inteligente que o irmão, mesmo não tendo nem uma pequena fração da instrução que ele recebe.

"─ Bethia, por que você faz tanto esforço para abandonar o lugar que Deus reservou para você? ─ Ele tinha a voz suave, e não irritada. ─ O seu caminho não é o mesmo do seu irmão, não pode ser. As mulheres não foram feitas como os homens. Você corre o risco de confundir o seu cérebro ao pensar em questões acadêmicas que não precisam lhe dizer respeito. Eu me preocupo apenas com a sua saúde atual e com a sua felicidade futura. Não é decente, para uma esposa, saber mais que seu marido..."

Dá raivinha, né? Eu sei. Esse é só um exemplo que ilustra o machismo dominante, mas eles se repetem ao longo da narrativa por diversas vezes. Outro ponto que merece destaque é o lugar da religião nessa passagem entre duas culturas. Desde o começo ─ até pelo pai de Bethia ser o pastor que tenta "salvar" os índios com a bíblia ─, vemos como o cristianismo tem um papel central e poderoso na sociedade da época. Mas é justamente quando Bethia conhece Caleb e, por acaso, presencia alguns ritos indígenas, que o choque se dá.

"A labareda das fogueiras dos wampanoags haviam se elevado, brilhando contra o céu noturno, e a música estava mais selvagem. O animal dentro de mim respondeu a ela. Agora, quando recordo aquela noite, não sei dizer como, nem por quê, me senti daquela forma. Só sei que as batidas dos tambores me tocaram num lugar profundo, interno, inexplorado. Ali, no escuro, sem sequer saber qual era meu propósito, desatei as mangas. O ar cálido acariciou meus braços. Deixei minha meia-calça cair e fiquei em pé, de braços e pernas nus como as mulheres wampanoags, com seus vestidos soltos e curtos. Enterrei os dedos dos pés na terra arenosa, que já estava mais fresca, e meu coração bateu ao ritmo dos tambores. A alma em meu interior, instruída nas questões divinas, pareceu sair do meu corpo em exalações intensas quando comecei a me mexer com as batidas. Lentamente a princípio, meus membros encontraram o ritmo. Meu pensamento cessou e um sentimento animal me conduziu até que, no final, dancei com abandono. Se o Demônio me teve em suas mãos naquela noite, devo confessar: apreciei seu toque."

Prefiro deixar que a forma como Bethia conhece Caleb em seus passeios pela ilha para vigiar o pastoreio ou colher ervas seja descoberta por conta própria. Mais ainda, que descubram sozinhos o caminho de Cheeshahteaumauk até a Universidade de Harvard. Muitos outros elementos (e personagens) são inseridos na história, muitas outras questões são levantadas, e muitos outros trechos lindos são lidos. A forma como Brooks escreve me encantou de uma forma que poucos fizeram. Seu trabalho é realmente primoroso. Merece créditos também a tradução que soube transmitir todas essas sensações e nuâncias para o nosso idioma.

Diferente do que geralmente acontece em livros de memórias, A Travessia de Caleb é contada em três partes. Bethia começa a escrever em 1660, em Great Harbor, bastante jovem. Depois, retoma os manuscritos em 1661, quando já se mudou para Cambridge:

"Eu não pensava que iria apanhar essa pena, depois de tê-la largado há tanto tempo. Mas a minha mente está em chamas e sinto que devo fazer algum relato desses últimos meses e da minha difícil condição presente, longe de casa, nesse lugar insalubre."

A terceira parte se dá somente em 1715, quando Bethia, não mais uma menina, já com bisnetos e no fim da vida, retoma sua escrita para narrar o restante de sua história. E a de Caleb, é claro.

"Levei a maior parte do dia de hoje para reler as narrativas desbotadas escritas pela menina que fui um dia. Tive de interromper a leitura várias vezes, pois fui invadida por memórias e as lágrimas borraram a minha visão.
[...] Será sempre assim, no fim das coisas? Será que alguma mulher é capaz de contar os grãos de sua colheita e dizer: foi o suficiente? Ou será que sempre pensamos no que mais poderíamos ter vivido se o trabalho houvesse sido mais árduo, a ambição mais vasta, as escolhas mais sábias? Continuo a ler e me pego sorrindo para essa jovem cheia de vigor, sua coragem, sua insensatez e seus muitos medos."

Peço desculpas, mas não consigo transmitir a riqueza de sentimetos que esse livro traz, nem a profundidade da história que conta. A Travessia de Caleb será guardado por mim em uma estante especial. Se os clássicos são, como ouvi certa vez, aqueles livros que resistem ao tempo, então a história de Bethia e suas perdas tem todo o potencial de um.

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