O Perfuraneve, Jacques Lob, Benjamin Legrand e Jean-Marc Rochette

Um trem com seus mil e um vagões percorre a Terra sem parar. O planeta agora é dominado pelo frio. A Terra, que outrora abrigava grande quantidade de vida, está coberta pela neve. A raça humana, entretanto, resiste. Num gigantesco trem está confinado o que restou dela. Nessa locomotiva está o último lampejo da humanidade.

O nome desse trem salvador é Perfuraneve. Tudo o que restou de vida no planeta está dentro dele. Na imagem, é possível vê-lo desbravar a neve enquanto carrega consigo a esperança. Uma suposta esperança, é claro. Nesse microcosmo que é a locomotiva dos mil e um vagões, todas as imperfeições humanas resistem. Pior ainda, afloram ainda maiores. Nesse trem de corredores apertados existem milícias, religiosos, insurgentes, políticos. Todas as organizações que estiveram presentes na maior parte do tempo da nossa civilização. Mas, mais do que isso, existe algo enraizado, que é a constante luta entre oprimidos e opressores. A massa que sofre e a minoria que goza. Embora tudo o que esteja além das paredes da locomotiva seja frio e morte, nesse universo minúsculo que sobrou a luta ainda existe.

Diante de uma nova Era Glacial, os humanos tiveram a chance de recomeçar, criar algo novo. Mas optaram por manter os sistemas antigos e, por isso, o trem é constituído por alienação, fanatismo religioso e corrupção. Sem esquecer, é claro, daquela história que é a verdadeira para Marx: a história das lutas de classe. Mantidos sob condições desumanas nos últimos vagões está uma massa gigantesca que anseia pelas coisas mais básicas do ser humano, enquanto alguns poucos privilegiados possuem conforto e fartura nos primeiros vagões. Com tudo isso, a metáfora é válida: a locomotiva que roda o mundo sem parar, assim como a eterna recorrência da disputa entre opressores e oprimidos.

A obra escrita por Jacques Lob e Benjamin Legrand não é considerada uma das melhores ficções-científicas dos quadrinhos à toa. A história por si só é peculiar, mas é o fato de ela andar de mãos dadas com uma estética primorosa que torna a obra o que é. A ambientação criada pelos autores é posta no papel por Jean-Marc Rochette com atenção e coloca os leitores na pressão e na claustrofobia de viver entre corredores estreitos da Máquina, assim como o desespero de se estar a poucos metros da morte gelada. A coloração das páginas também desempenha um grande papel na história. O trabalho em preto e branco dá as caras do cenário, que é sujo, seco e frio. Todavia, a produção não é imune aos defeitos. Algo que me incomodou enquanto lia foi uma certa falta de sincronia entre as imagens e o roteiro, mas creio que isso não chega a estragar a experiência.

Em 2013 a HQ recebeu uma adaptação para o cinema por Bong Joon-Ho, contando com um elenco com nomes famosos como Tilda Swilton, Chris Evans, William Hurt e Jamie Bell. O próprio ilustrador Jean-Marc Rochette produziu artes conceituais para a produção do filme. A HQ, por sua vez, recebeu recentemente uma excelente edição da Editora Aleph em nossas terras, onde nunca chegara. O trabalho reúne a história original, mais as duas outras que a sucederam, assim como as artes feitas por Rochette para o filme.

Diante de tudo isso, O Perfuraneve é uma obra essencial para fãs de quadrinhos, ficção científica e tramas pós-apocalíticas. É uma história que apresenta-nos com maestria todos os defeitos humanos presos num só local, e em como eles persistem nas situações mais adversas possíveis. Prepare-se para uma aventura extremamente alegórica, que relaciona revoluções, alienação e muitas conspirações políticas. Ela é, também, um retrato fiel da nossa sociedade e dos elementos que a compõem. A do passado, a atual e a futura (o pessimismo é válido nesse caso). Por isso, O Perfuraneve merece todos os elogios que recebe e ainda receberá.

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