The Dark Side of The Moon: Nós e Eles


O ano de 1973 parece ter reservado grandes clássicos para o mundo. No ano em que filmes como “O Exorcista” e “O Homem de Palha” confrontaram suas plateias com o medo do desconhecido, Pink Floyd trouxe para o universo musical sua obra mais importante: The Dark Side of The Moon. Após o mundo passar por grandes guerras, uma epidemia de síndrome do pânico tomou a sociedade durante o século XX, forçando-nos a refletir sobre nós mesmos e nossas ações. Enquanto o crescente desenvolvimento tecnológico criava a sensação de estabilidade e supremacia social, os jogos políticos, no entanto, se tornaram uma sombra que poderia engolir a sociedade inteira. Nessa época, como válvula de escape, as mídias intelectuais tornaram-se os principais meios de denúncia e reflexão. Em 1973, já como uma das bandas de rock mais influentes e inovadoras da época, Pink Floyd mostrou ao mundo uma obra absurdamente humana e também assustadora. O chocante encontro com o nosso “lado escuro”.
"Você viverá muito e voará alto
Mas só se você se entregar a maré
E equilibrado na maior onda
Você corre cedo em direção a sepultura
"
("Breathe", 1973, f. 2, tradução livre)
Uma crescente batida pulsante mistura-se com sons de risadas enlouquecidas, caixas registradoras e gritos. Essa é a abertura de "The Dark Side of The Moon" que, como uma introdução, já nos apresenta seu argumento principal: a humanidade e sua enlouquecida ambição. “Speak To Me” e “Breathe” são o prefácio do álbum, representando o único momento de pureza humana: o nascimento. Porém, pouco depois das primeiras pulsações do coração livre do ventre materno, quando o indivíduo respira pela primeira vez o ar da humanidade, ele é, invariavelmente, imerso nos jogos interpessoais da sociedade moderna. Como um pai que aconselha seu filho pequeno, “Breathe” fala diretamente com o ouvinte sobre a corrida da vida e da morte. Através da sonoridade característica da banda, nossa consciência é preparada para a viagem intrapessoal que virá a seguir. Ao fim da introdução ao álbum, somos transportados através da canção “On The Run” para o primeiro capítulo de "The Dark Side of The Moon": a canção “Time”.

Após a explosão da consciência presenciada ao fim da viagem em “On The Run”, entramos na dimensão do tempo. Os séculos XIX e XX representaram, ao fim de tudo, uma grande corrida contra o tempo. A industria explodia, o mercado tornava-se global e o capitalismo firmava-se como o grande sistema predominante no mundo, no entanto, para cobrir a demanda, o tempo foi tomado de quem sustentou essa corrida. O tempo tornou-se raro e precioso para a vida moderna. Em um sentimento de culpa e ódio, mas também de saudade, “Time” se abre com uma mensagem clara. Uma sinfonia irritada de sinos de relógios toma nossos ouvidos para seguir uma progressão dramática de tambores e guitarra. Ironicamente, em uma época de músicas que vão direto ao ponto, “Time” demora propositalmente para progredir, obriga o ouvinte a exercitar a paciência e ouvir com atenção o ritmo crescente. Finalmente a música eclode e ouvimos uma confissão poética e reflexiva, um despertar necessário. “Time” é uma preparação para “olhar por fora”; é o despertar da consciência em meio a uma alienação coletiva; é o pulo para fora da matrix que prendeu o homem em meio às máquinas da indústria.

(DALÍ, "La persistencia de la memoria", 1931, MoMA)

Ao fim do despertar, o homem encontra-se do lado de fora daquele sistema que outrora estivera preso. Porém, o despertar ainda é o primeiro passo em busca do entendimento sobre o “eu” e sobre o “nós”. A desconstrução dos conceitos ensinados desde o berço é dolorosa. Livrar-se das garras das relações sociais ao qual estava imerso é uma atitude corajosa e onerosa; é preciso esforço para enfrentar a grande tempestade mental que virá. A lamúria quase mórbida de “The Great Gig In The Sky” representa a morte do “eu” preso ao sistema, representa a desconstrução dos velhos conceitos, a dor causada pelo desalinhamento da conexão do homem com a sociedade, porém também representa um renascimento. O homem renasce em uma dimensão de pensamento livre das ideias derivadas de heranças ultrapassadas. Durante a faixa, somos guiados pela força e melodia do lendário grito de dor e pesar, mas também pelo grito da dor do renascimento. Ao passo que a música chega ao fim, o choro acalma-se para se tornar uma canção de ninar que saúda o novo e livre “eu”.
"E eu não estou com medo de morrer
A qualquer hora pode acontecer, eu não me importo
Por que estaria com medo de morrer?
Não há razão para isso
Você tem que ir algum dia
"
("The Great Gig In The Sky", 1973, f. 5, tradução livre)
Money” é a faixa seguinte e como o próprio nome diz trata-se do grande símbolo da humanidade, a árvore cujos frutos ora são maduros e suculentos, ora são podres e decompostos. O dinheiro é, senão, o grande paradoxo contemporâneo ao qual poucos têm coragem de abrir mão. “Money” denuncia os dois lados da moeda com os olhos bem abertos e a mente afiada. A enorme hipocrisia moral da sociedade diante das consequências de sua própria criação. O dinheiro transformou a sociedade em uma grande jogo de azar onde ganha quem pode mais. A ambição mostrou-se uma epidemia devastadora na modernidade, capaz de destruir quaisquer conceitos morais e éticos. No entanto, para evitar o sentimento de culpa, a sociedade fecha os olhos para as óbvias consequências que favorecem uns e prejudicam outros numa discrepante desproporção. A vivência humana torna-se desigual em grande parte por pura negligência daqueles que tomaram a maior parte do dinheiro e poder. “Money” é o capítulo mais constrangedor dessa história que, em grande pessimismo, faz pensar que somos reféns do próprio sistema. As pessoas se tornaram números, estatísticas e especulação, as relações humanas tornaram-se disputas de superioridade incentivadas a todo momento por quase todas as instituições modernas. Emergir para fora desse complexo é um luxo quase impraticável, restando apenas a imaginação de hipóteses, mas isto se torna um exercício necessário para aprofundarmos a auto-análise, o “olhar para dentro” para ver o que realmente nos cerca. As primeiras faixas do álbum sintetizam essa atitude de emergir do sistema, quase como um ritual de iniciação, pois só limpando a vista da consciência se pode entender com plenitude a real situação da sociedade moderna.

Desde que o dinheiro foi introduzido na vida humana, as relações sociais transformaram-se. A proteção ao patrimônio se tornou uma grande prioridade, causando muitos prejuízos em nome de uma supremacia econômica. “Us and Them” é o principal relato sobre as relações humanas, a grande vítima da modernidade. A canção talvez também seja o principal capítulo dessa história, que se inicia como uma marcha funérea, lenta e profunda e que se desenvolve a um grito de socorro. A competitividade alimentada pelo sistema capitalista dita a forma como os homens interagem entre si. O poder torna-se a grande ferramenta de dominação. O homem que possui poder, possui o mundo e nele dita suas regras. A população que não se beneficia, também é a que mais sofre, e, sem perceber, torna-se a grande provedora de riquezas para aqueles que já dominam. “Us and Them” separa desde o título o “nós”, a maioria alienada que sofre os jogos de “eles”, a minoria rica e autoritária. “Nós” são pessoas comuns, como eu e você, mas que não tem outra escolha que não seja seguir o rumo que a modernidade nos impõe, transformando-nos em marionetes controladas por aqueles que detém o poder. “Eles” não têm cara, não têm forma, eles apenas estão por aí, como fantasmas na surdina, não sentimos sua presença, mas são onipresentes e comandam os passos de todos aqueles que estão sob o seu domínio. “Us and Them” é um lamento e um pedido de socorro perfeitamente alinhado ao seu tempo, cuja época remonta à guerra tecnológica do século XX e à implantação imperialista do modo de vida norte-americano, entretanto ainda não se pode dizer que é uma canção obsoleta.
"Morto e destruído
Não há como evitar mas há muito a respeito disso
Com e sem
E quem vai negar que é esta a razão de toda a luta?
Sai do meu caminho, estou num dia cheio
E estou de cabeça cheia
Por não querer saber do preço do chá e da torrada
O homem velho morreu
"
("Us and Them", 1973, f. 7, tradução livre)
Quando “Us and Them” tem seu fim, ouvimos uma grande mudança de sentimento. “Any Colour You Like” surge alegre e amistosa. É o contraponto do álbum. A canção nada mais é que o prisma representado na icônica capa do álbum. É o ponto que separa a sociedade moderna da sociedade alternativa, a alienação da liberdade, o comum do louco. Enquanto “Us and Them” é o relato do feixe branco, simbolizando a via de mão única que somos obrigados a caminhar para viver no mundo moderno, o prisma, no entanto, permite que as divergências sigam seu próprio caminho, que tenham sua própria cor. O ser humano, enfim, retoma sua liberdade de escolha. Fora do sistema, porém, os homens livres são os desviados e os loucos, pois a divergência é uma afronta ao sistema vigente, o livre pensar é, portanto, seu grande vilão, e todos os que se permitem transcender são rapidamente contidos e classificados como enfermos.


Após um saboroso e hipnótico solo de guitarra, entramos finalmente na terra do pensamento livre, a terra dos loucos. “Brain Damage” se apresenta suave e melódica para falar sobre loucura e nos faz questionar sobre quem são os verdadeiros loucos: nós ou eles? Entretanto, independente de quem estamos falando, a loucura nos faz encontrar cara a cara com o nosso verdadeiro eu, seja ele bom ou ruim. O grande encontro com o lado escuro da lua, é, na verdade, o encontro com o “eu” escondido sob a máscara. As aparências se tornaram tão valorizadas que a verdadeira personalidade é reprimida ao ponto de haver uma completa divisão entre aquele que se aparenta ser e aquele que se é. Tornamo-nos, então, duas pessoas em uma. “Há alguém na minha cabeça, mas não sou eu” ("Brain Damage", f. 10), diz a canção. Porém, o colapso desses duas personalidades é inevitável, a justaposição das duas é insustentável, tendendo sempre para o lado mais fraco. O confronto com o nosso “eu” reprimido tem seu clímax quando a mente finalmente entra em colapso. Somos obrigados a encarar o nosso “lado escuro”, mas este é o único momento onde se pode encontrar a verdade sobre nós mesmos e nos libertar.

Liberdade é o que fala a canção de encerramento, “Eclipse”. Liberdade para ser quem somos, onde todas as suas ações representam a pura manifestação da sua verdadeira personalidade, porém, quando esta se encontra eclipsada por uma máscara, suas ações deturpam-se, se tornam oblíquas e desviadas de seu verdadeiro propósito. O sol, quente e radiante, pode promover a mais completa harmonia, mas enquanto a lua, fria e insalubre, estiver ocultando-o, as manifestações humanas nunca serão, de fato, autênticas. Quando olhamos para o conceito do álbum em geral, vemos que a humanidade sofre um processo de condicionamento pelos grandes poderes globais, como uma espécie de padronização. Estamos inseridos numa cultura onde ou o indivíduo se adapta à sociedade e seus valores ou ele é excluído. As diferentes cores, que representam as variações do “ser”, são transformadas em um feixe único, branco e estéreo. “The Dark Side of The Moon” denuncia a própria humanidade e seu sistema, mas propõe que nos libertamos desse eclipse, que deixemos o sol emanar sua completa harmonia sobre a Terra.
"E tudo sob o sol está em perfeita sintonia
Mas o sol esta coberto pela lua
'Não há um lado escuro na lua, na realidade
Na verdade ela é toda negra'"
("Eclipse", 1973, f. 10, tradução livre)
Pink Floyd trouxe um álbum conceitual e, mesmo assim, comercial. Sua mensagem ainda é reproduzida com frequência atualmente, possuindo um extenso grupo de fiéis seguidores. “The Dark Side of The Moon” figura merecidamente entre os melhores álbuns do século XX e um dos mais importantes na história da música moderna, sintetizando com grande maestria o sentimento da época. O álbum é uma história contada de forma bela, poética, assustadora e, com certeza, atemporal. Sua mensagem surpreendente humana ultrapassa décadas e poderá ultrapassar séculos permanecendo atual e moderna. Um relato assustador, sim, mas também libertador e necessário, pois “apesar de tudo nós somos pessoas comuns, eu e você, só Deus sabe que nós não tínhamos outra escolha” ("Us and Them", f. 7).

2 comentários:

  1. Nossa, que análise genial desse álbum. Confesso que não é o meu favorito, mas as músicas são de reflexão tão profunda que nos faz gostar do mesmo jeito. Pink Floyd, ao mesmo tempo que é amada por muitos, é mal compreendida pelos outros, por não terem a sensibilidade pra sentir o que as notas de cada música passa.
    Parabéns pelo post!

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    1. Brigadão, Juliara. É um dos meus álbuns favoritos de todos os tempos, mas também foi mal compreendido por mim durante muito tempo. Talvez um dos maiores méritos do álbum também seja conseguir cativar mesmo sendo incompreendido hahahaha.

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