A Velocidade da Luz, Javier Cercas


Me sinto muito pouco à vontade para falar desse livro. Me perguntei bastante se eu deveria tentar ou não, mas resolvi que sim, na esperança de conseguir expressar pelo menos uma parte rasa da profundidade vertiginosa dessas 248 páginas. A verdade é que A Velocidade da Luz entrou sem tropeços no meu rancho dos melhores livros da vida ─ e é o primeiro livro que me lembro de ter fechado pensando algo do tipo.

Se eu pudesse, diria apenas: leia. É melhor não saber nada sobre, descobrir por conta própria. É claro que você não é obrigado a admirar tanto quanto eu admirei tudo nessa obra, mas experimente, pois este é um livro bem diferente das coisas que já vi por aí. Contudo, como estou aqui para fazer uma resenha, vou levantar alguns pontos que anotei no decorrer da minha leitura. Volto a afirmar que eu preferiria, no seu lugar, poder fazer meu arremate sem influências quaisquer. Mas vamos lá.
"[...] ─ O que é um escritor?
─ Que é que você acha? ─ devolvi irritado. ─ Um sujeito que é capaz de pôr as palavras uma depois da outra e que é capaz de fazer isso com graça."

Logo no início percebi o quanto Javier Cercas era capaz de fazer isso com graça. Ler seu livro é uma delícia. Talvez ele esteja te convencendo de como o desejo de suicídio pode ser genuíno, relembrando de como foi passear sobre o parapeito da sacada se equlibrando, feliz, nu, cantarolando uma música esquecida, ou falando sobre o horror de se sentir responsável pela morte de pessoas que ama. Cada palavra parece ter sido passada por um rigoroso processo seletivo, não sei se sistemático ou intuitivo, só sei que o autor as escolhe de forma deliciosa.

No começo, lia em doses homeopáticas. Não por que não estivesse gostando o suficiente para me fazer querer ler páginas e mais páginas em sequência e sem interrupções, mas porque as engrenagens da trama ainda estavam sendo encaixadas em seus devidos lugares. Mais adiante isso muda, as engrenagens já estão maquinando e você é puxado com tanta força para dentro da história ─ ou será um relato? ─ que, sempre que a leitura é interrompida, voltar para o mundo real é como um parto, e sempre que é retomada, um mergulho profundo. Apesar disso, no começo o livro não dá sinais daquilo que vai se tornar, ele simplesmente se torna ─ e te surpreende. Do começo ao final é provocante, mesmo com uma trama cheia de oscilações.

É uma história contada por um homem, um narrador que, fui perceber quase no final da leitura, não é nomeado em momento algum. Ele é um escritor. O livro fala sobre o escrever, inclusive sobre o escrever desse próprio livro, o que nos faz pensar se não foi o autor quem viveu tudo o que nos conta o nosso narrador. Pois é isso que ele faz: nos conta uma parte de sua vida, em especial os encontros dela com a vida de um amigo que conhece numa cidade provinciana dos Estados Unidos onde foi dar aulas. Sobre o amigo, um ex-veterano do Vietnã, vão sendo descoberto aos poucos os horrores ─ ou será a beleza? ─ que viveu na guerra.
"[...] ─ Não me venha com a história de que uma coisa são os romances, e outra, a vida ─ continuou, voltando ao inglês. ─ Todos os romances são autobiográficos, meu amigo, até os ruins."

Em incontáveis momentos Javier parece usar do contexto do enredo para deixar comentários acerca da construção do próprio livro. Cheio de referências literárias e musicais (principalmente literárias), por ser um relato de vida do narrador, a cronologia vai e vem em alguns momentos, ou pelo menos não segue uma linha cronológica metódica.
"─ Gosto disso ─ interrompeu Rodney.
─ Do quê? ─ perguntei, atônito.
─ De que você ainda não saiba do que o romance se trata ─ respondeu. ─ Se você soubesse de antemão, seria péssimo: só diria coisas que já sabe, que é o que todos sabemos. Se, ao contrário, você ainda não sabe o que quer dizer mas está louco o bastante, ou desesperado, ou com coragem suficiente para continuar escrevendo, talvez acabe dizendo algo que nem mesmo você sabia que sabia e que só você poderia saber, e talvez isso tenha até algum interesse."

É essa realmente a sensação do livro: não ter um rumo definido. Rumo este que é trocado uma série de vezes, e que, no final, toma uma direção que nos faz perguntar ainda mais se tudo que está escrito ali aconteceu de verdade ou é só fruto da mente criativa do autor. Quero acreditar mais na primeira opção, embora tenha um pouco de dó de Javier por isso.

A história é cheia de minúscias, cheia de sentimentos, de entrelinhas. Fala sobre a guerra, fala sobre o poder destrutivo da fama e do sucesso, sobre a família, sobre cair e levantar, sobre a arte de escrever, sobre como cada pessoa carrega consigo uma história desconhecida e, muitas vezes, totalmente fora do nosso alcance. Mas essa história está lá, ela pode ser trágica, embutida em algum canto da nossa memória, impedindo um minuto sequer de paz.

Hoje, se alguém me pedisse para indicar um único livro, um que tenha valido muito a pena ser lido, eu diria: "leia A Velocidade da Luz". Para mim, foi uma leitura singular e muito, muito rica.
"Era um pedido absurdo em todos os sentidos, mas, justamente por ser absurdo, não pude ou não soube recusá-lo. O fato é que, ao longo desses dezesseis anos, nunca deixei de procurar uma explicação para aquele gesto: pensei que ele me confiou as cartas dos filhos por saber de que não lhe restava muito tempo de vida e não querer que acabassem nas mãos de alguém que desconhecesse seu significado e pudesse se desfazer delas sem mais; pensei que me confiou as cartas porque seu gesto correspondia a um propósito simbólico e sem esperança de se desvencilhar para sempre da história de desastres que elas encerravam, da qual, ao transferi-las para mim, tornava-me depositário ou até responsável, ou porque com isso quisesse me obrigar a dividir o fardo de sua culpa. Pensei tudo isso e muito mais, mas claro que não sei com certeza por que ele me confiou essas cartas e já nunca saberei; talvez nem ele mesmo soubesse. Não faz mal: o fato é que ele as confiou a mim e agora estão aqui na minha frente, enquanto escrevo. Ao longo desses dezesseis anos, eu as li muitas vezes."

1 comentários:

  1. Acabei se ler agora o livro e é de fato incrível!!!
    Gostei muito do seu texto, faltou apenas mencionar passagens que dão contexto ao título do livro. Abraço

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